Por outra história da educação popular no Recife: além do Movimento de Cultura Popular

Que experiências educacionais estiveram presentes na Educação Popular no Recife – importantes na configuração da Rede Municipal de Educação – além daquelas que estão relacionadas ao advento do Movimento de Cultura Popular/MCP (1960-1964)? A Educação Popular no Recife, especialmente a Rede Municipal de Educação do Recife, é comumente indicada como oriunda do Movimento de Cultura Popular, que ocorreu no Recife nos anos 1960-1964. Pensamos que, numa configuração não linear e descontínua de espaço e tempo, outras experiências também foram importantes para constituir o que chamamos, hoje, de Rede Municipal de Educação do Recife. Dentre estas experiências aconteceram as primeiras escolas municipais (“escolas isoladas” e reunidas), que começaram a funcionar juntamente com o governo do Estado de Pernambuco em 1895. A outra experiência foi o Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco, que se instalou em 1957 no Recife – especialmente a ideia de cultura popular ali promovida. Elas nos mostram, dentre outras coisas, que a formação da  Rede Municipal do Recife vai além da experiência do Movimento de Cultura Popular – MCP, como comumente é indicada.

A escola primária pública no Brasil, historicamente falando, nunca foi priorizada.  Desde a Independência, o Ensino Superior e o Ensino Secundário (propedêutico) eram as prioridades. Essa realidade com as escolas de primeiras letras, Escola Primária (hoje Educação Básica dos anos iniciais) chegou até a República (ARANHA, 2013). Não é à toa que, ainda em 1932, os Pioneiros da Escola Nova denunciavam esse descaso em relação à escola primária, e em contrapartida indicavam justamente que a escola primária seria fundamental para uma democracia, inclusive sendo rigorosamente articulada com os ensinos secundário e superior (MANIFESTO DOS PIONEIROS, 2010).

No entender de Anísio Teixeira, um dos signatários desse manifesto, o ensino primário ou a escola primária eram o mínimo que o Brasil deveria oferecer de maneira universal para a população. A escola primária seria a mais importante escola do sistema de Educação – e precisaria ser reconhecida como tal. Não que a média e a superior não fossem importantes, mas para acelerar o progresso, a escola primária deveria ser prioridade (TEIXEIRA, 2007a, p. 117).

No município do Recife, a Educação Popular, especialmente na Rede Municipal de Educação, é normalmente indicada por uma série de estudos[1] da História da Educação como sendo oriunda da experiência do Movimento de Cultura Popular – que ocorreu no Recife nos anos 1960-1964. Até porque, quando o MCP se efetivou, existia apenas uma única escola no município.

Porém, numa configuração não-linear e descontínua de espaço e tempo, entendemos que também existiram outras experiências educacionais – anteriores e concomitantes –  que foram importantes para constituir o que chamamos, hoje, de Rede Municipal de Educação do Recife.

O descontínuo:

Não se trata, bem entendido, nem da sucessão dos instantes do tempo, nem da pluralidade dos diversos sujeitos pensantes; trata-se de cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e funções possíveis. Tal descontinuidade golpeia e invalida as menores unidades tradicionalmente reconhecidas ou mais facilmente contestadas: o instante e o sujeito (FOUCAULT, 2009a).

Dessa forma, não seria apontar essas experiências como origem ou como se elas – linearmente e progressivamente – resultassem na formação da Rede Municipal do Recife.  Quando apresentamos essas experiências, estamos dizendo que elas também colaboraram de forma lenta, fragmentada e descontínua no espaço e no tempo para a formação do que entendemos hoje como Rede Municipal do Recife.

Uma das experiências se configurou a partir das primeiras escolas municipais (escolas isoladas e reunidas), que começaram a funcionar juntamente com o governo do Estado de Pernambuco em 1895.  Neste início da República no Brasil, a autonomia municipal foi favorecida, assegurando aos municípios a responsabilidade de oferecer educação primária para a população. No Recife, isso foi feito em parceria com o governo do Estado de Pernambuco. Em 1895, foram inauguradas as três primeiras escolas municipais: Santo Amaro das Salinas, Pinto Dâmaso e Municipal de Iputinga. Nessa época, foi organizada uma estrutura administrativa para conduzir o serviço de Educação Pública. Chefiados pelo Prefeito e pelo Conselho Municipal, esses funcionários eram apoiados pelos inspetores, diretores escolares e professores. A maioria dessas escolas eram do tipo “escolas isoladas”, caracterizadas por funcionar nas casas dos professores, funcionando em apenas um único cômodo – a sala de aula – e com todos os alunos cursando uma única classe. O método de ensino utilizado era o Lancaster e Bell, utilizado na Inglaterra quando havia poucos professores. Nesse “método mútuo”, os alunos mais hábeis, na carência dos docentes, transmitiam os conhecimentos aos outros.  Atendendo a um quantitativo baixo de alunos, a partir de 1928 essas escolas ficaram apenas sob a responsabilidade do governo de Pernambuco, restando ao município, já nos anos 1960, quando se organizava o MCP, apenas uma escola.

Outra experiência foi o Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco, e especialmente a ideia de cultura popular ali promovida. O Centro  se instalou em Pernambuco em 1957, existindo até 1975. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco[2] foi organizado por Anísio Teixeira, com o desígnio de promover regionalmente a pesquisa e a ciência na Educação (no sentido de torná-la também descentralizada), com vistas a elaborar gradualmente uma política educacional para o país[3]. Essa ideia de atender às demandas regionais já era reclamada pelos pioneiros da Escola Nova de 1932 (2010). Inclusive, Anísio Teixeira, um dos pioneiros, defendia a ideia de municipalização de Ensino.

Para Anísio Teixeira, a escola seria a “própria vida” e, por isso, teria de “ser instituição essencialmente regional, enraizada no meio local, dirigida e servida por professores da região, identificada com seus mores, seus costumes”[4]. Tanto que ele convidou Gilberto Freyre para dirigir o Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco. Gilberto era um sociólogo que tinha uma preocupação de constituir uma ‘sociologia aplicada’, mas que, por sua vez, configurava ideias de uma brasilidade inspirada em aspectos regionalistas.

A importância de investigarmos esse tema ocorre por estarmos incluindo essas experiências na formação da Rede Municipal, narrando assim uma outra história da Educação Popular no Recife.

Para desenvolvermos este texto, depois dessa introdução, mostraremos as especificidades das escolas isoladas, e na sequência as possíveis colaborações facilitadas pelo Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco. Por fim, apresentarelmos as nossas considerações finais e as referências bibliográficas.

 

[1] Ver os estudos de: COELHO, Germano. MCP. História do Movimento de Cultura Popular. Recife: Ed. do Autor, 2012; FÁVERO, Osmar (org). Cultura Popular. Educação Popular. Memória dos anos 60. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983; ROSAS, Paulo. O movimento de Cultura Popular – MCP. Rio de Janeiro. 1980. in MEMORIAL DO MCP. Recife: Fundação de Cultura da Cidade de. Coleção Recife, volume XLIX; Recife. 1986.BATISTA NETO, José. MCP: o povo como categoria histórica. In.: REZENDE, Antônio Paulo. Recife: que história é essa? Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1987 (Tempos e Espaços, 1); AZEVEDO, Janete M.ª Lins de. Reconstituição Oral da história recente da educação popular em Pernambuco: O Movimento de Cultura Popular; Recife; Relatório final de pesquisa. Departamento de Fundamento sócio – filosóficos da educação. CE – UFPE. 1986. É importante salientar que esses estudos são da área de Educação, História, Sociologia. E que nem todos tem intenção de retratar a História da Educação.

[2] Havia também o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e os Centros Regionais da Bahia, de São Paulo, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul.

[3] Ofício nº 372. 1/10/1957.  Enviado do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos para o Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Pernambuco. (Decreto nº 38.460 de 28 de dezembro de 1955). Acervo do Centro de Microfilmagem da Fundação Joaquim Nabuco.

[4] TEIXEIRA, Anísio Spínola. Educação não é privilégio. 7.ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007b. p. 67.

Texto completo em: SOUZA, Kelma B. de; MARÍLIA, Nyrluce.  Por outra história da educação popular no Recife: além do Movimento de Cultura Popular. Revista de Educação Popular. Universidade Federal de Uberlândia. Edição Especial. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/reveducpop/article/view/69990/37051

 

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