Os pioneiros já diziam, em manifesto (1932): mesmo depois de anos de República, tudo estava na educação do Brasil desarticulado e fragmentado. Era necessário constituir um sistema para o país! Um sistema gratuito, público e laico. Descentralizado, atendendo as necessidades locais, mas regido por leis gerais. Nos anos 1950/1960, mesmo com muitas ações pontuais de muitos dos signatários do manifesto (inclusive de Anísio!), ainda se questionavam aspectos sobre o sistema de educação. Tanto que a organização dos próprios centros (brasileiro e regionais) veio para tentar tornar ‘sistemática’ a educação no Brasil.
Anísio, em 1957, ainda orientava que administrativamente a escola deveria ser dirigida por autoridades locais e regida através de leis estaduais e federais, sendo integrada à comunidade. Porém, essa integração não seria só administrativa, “mas, na identificação da escola, pelo seu currículo, com as atividades, as características e as condições do meio e da cultura local”.
Freyre ‘desdobra’ o que seria o sistema de educação. Para ele, seria um sistema que privilegiasse a rurbanização. Ou seja, temas, métodos e práticas organizados de forma a conciliar os valores urbanos e rurais. Um ensino que considere o rural (nem independente) e o urbano (nem resolvido) como complementares (FREYRE, 1957a). Na inauguração do Centro Regional, Freyre ressalta como esse “sistema de educação” deve ser desenvolvido: “no sentido da unidade nacional sem desprezo pela diversidade de situações regionais do homem brasileiro, podemos tirar partido dessa diversidade, em vez de ser por ela prejudicados” (1958, p. 35).
A ‘Professora’
Quando falou sobre a municipalização do ensino, em 1957, Anísio enfatizou que a escola era uma instituição social que deveria ser integrada à comunidade e estar sob a responsabilidade da mesma. Assim seriam, também, os profissionais. O professor deveria pertencer à comunidade, e só assim poderia realçar os aspectos ali vividos.
Já Freyre afirmou que existiam duas coisas fundamentais que a professora (por ele denominada de missionária, mestra, normalista) não deveria esquecer no exercício da sua função. Primeiro: não apenas repetir o que os pedagogos europeus e americanos dizem! Segundo: em cooperação com o cientista social, a professora, deve acolher “as diferenças regionais de natureza e de cultura, aproveitando-as no sentido de, através delas, definir-se melhor, quer a cultura nacional no seu todo, quer a própria personalidade de cada brasileiro em particular” (FREYRE, 1958, p. 31). Mas não seria apenas acolher os aspectos regionais. Para ele, seria trazer também aspectos (científicos) do mundo urbano para as populações analfabetas.
Mas como se ensina?
Freyre enxerga o ensino como uma ‘missão social’, tentando equilibrar os valores urbanos e rurais e, principalmente, ajudando as populações a despertar o gosto pelos seus próprios valores. A professora precisa, em sua visão, ajudar as populações a se reconhecerem e valorizarem sua cultura de raiz, a bagagem original e autêntica que trazem (suas danças, músicas, culinária, brincadeiras). Não era apenas ensinar a contar, ler e escrever. Mas ensiná-las no ‘contexto real’, como também dizia Anísio (TEIXEIRA, 2007b):
“Ler, escrever, contar e desenhar serão por certo técnicas a ser ensinadas, mas como técnicas sociais, no seu contexto real, como habilidades, sem as quais não se pode hoje viver. O programa da escola será a própria vida da comunidade, com o seu trabalho, as suas tradições, as suas características, devidamente selecionadas e harmonizadas.”
Para Freyre, o que o professor deveria fazer era analisar cuidadosamente a realidade, desprezando algumas “superstições” trazidas dos “velhos rurais” e substituí-las pela ciência. A conciliação freyreana prega que, por outro lado, seria também saber aproveitar, dentro do âmbito da ciência, outras superstições (“conhecimentos folclóricos sobre aspectos regionais”). (FREYRE, 1957b, p. 43). Foi mais ou menos isso que ele anunciou no discurso de inauguração do CRR (FREYRE, 1958, p. 34):
“Há regiões brasileiras das quais o educador pode extrair, com a colaboração do cientista social, sobrevivência de culturas primitivas capazes de, através da educação da criança e do próprio adulto, enriquecer a cultura brasileira daquela vitalidade ou espontaneidade como que virgem, daquela sabedoria toda ou quase toda oral, daquela poesia irracionalmente folclórica, que as gentes primitivas e rurais às vezes guardam como se fossem reservas de abastecimento.”
E quem seria essa gente que precisa ser ‘educada’?
O “público-alvo” da educação regionalista seria essa ‘gente’ que ‘necessitava’ de outros saberes vindos da ciência, do urbano. Uma gente que ‘guardava’ uma cultura espontânea, “irracionalmente folclórica”. Eles, para Freyre, têm algo como se fosse um estoque de autenticidade, de pureza, de originalidade. Seria a nossa brasilidade!
Assim, Freyre tenta abarcar não apenas quem somos nós (fazedores de uma cultura original, autêntica e de raiz, como anunciou no Manifesto Regionalista), mas principalmente, com essa ‘oportunidade’ de se conciliar com Anísio Teixeira, ele tenta responder (e inventar!) quem somos pra constituir nossa identidade.
Centros Transmunicipais de Cultura e Recreação
Freyre (1957a) trouxe uma sugestão interessante para as populações do interior: a construção de Centros Transmunicipais de Cultura e Recreação, estruturados em unidades implementadas a cada dois, três ou quatro municípios.
Os centros deveriam oferecer, através da arquitetura, decoração, jardim-horta, restaurantes, elementos que representem a vida e os valores regionais. Deveriam mostrar a produção cultural das populações rurais, valorizando-as mas, ao mesmo tempo, apresentando outras produções culturais (teatro, música, livros etc), outros valores. Em sua visão, ambas são produções importantes para que as populações se constituam enquanto “uma nova civilização”. Para concretizar as ações, Freyre saiu convocando os governos, as pessoas, os donos de empresas e indústrias. A ideia seria levar uma “vida nova ao interior do Brasil”, onde as pessoas poderiam ter contato direto com o “saber e arte do país”, vendo e ouvindo Manuel de Abreu, Manuel Bandeira, Anísio Teixeira, Carlos Drummond, Villa Lobos e José Lins do Rego, entre outros.
(Livro completo em: SOUZA, Kelma F. Beltrão de. Gilberto Freyre e Anísio Teixeira: uma educação regionalista no Recife. Livro Rápido: Olinda, 2017. Premiado pela Academia Pernambucana de Letras – APL; Prêmio Dulce Chacon/Escritora Nordestina 2016/2017)